Amou daquela vez como se fosse a última. Beijou sua mulher como se fosse a última.
Fincou suas forjadas pupilas no ferro do metrô. O ar agitava-se abobalhado ao redor de suas orelhas, seus dedos murchavam em contato com as partículas de cimento, seu bigode projetava um ninho futurista no céu da boca e seus lábios encerravam uma procissão fúnebre cuspindo vapor. E por que não dizer que alguma coisa acontecia no seu coração? Somente ali, depois de sair do enfurnado buraco metropolitano e cruzado a Ipiranga e a avenida São João. Pois quando chegara ali nada entendia da dura poesia concreta de suas esquinas. E sim, alguma coisa acontecia em seu coração. Seu rosto gotejava suor com o gosto dela e o Sol destacava adesivos de amor em seu peito. Não lhe ocorrera que seu bolso furava e não parou sua caminhada quando ouviu o tintilar de uma moeda de cinqüenta centavos flertando com a pedra bege cravada na calçada. Ali, na Terra, jogavam canastra. Uns dias choviam, outros dias fazendo Sol. Mas a coisa ali estava definitivamente preta - tão forte o eco das dentaduras e as mordidas das garotas da praça da República, dançando ragtime em telhados umedecidos pelas lágrimas dos poetas exaustos pendurados no teatro municipal, notas nuas de saxofone, transformistas rebolando nas curvas toscas das alamedas, executivos hipnóticos sentados em suas malas pretas seladas por ambição e esperança de um dia alçar a vida – enquanto passam, os ternos rasgam e as prostituas entoavam canções a Afrodite, padres sonham com a carne do homem e benzem o sangue de Cristo, chefes vomitam auxiliares e secretárias vomitam verbos. Verbos sem nome nem casa. Limpou seus pés no capacho esgrouviado à porta do arranha-céu, ao lado da faxineira vesga. Parados à faixa, ambos os lados processavam a meada ociosa que rodopiava nas maçanetas prateadas que cruzavam a avenida: lésbicas esquerdistas, grávidas solteiras, estudantes sulfurosos, jornalistas comendo o tempo em suas cornijas, mendigos ovacionados, meninas lindas, corações em carrossel, pálpebras de Narciso. Botas tropeçam no céu como bêbadas. Placas manifestavam o amor pelo ódio ao mundo. (Inconsciente de massas.) A massa de pão acima da cabeça do cozinheiro e um tango no terraço. Um, dois, três, quatro...Cinco, seis, sete, oito. Sentou pra descansar como se fosse um príncipe. Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo. E tropeçou no céu como se ouvisse música. A gente corria sem rumo na rua do meio. O meio parou na sombra do farol vermelho (verde), amarelo (vermelho), verde (amarelo). Morreu na contramão atrapalhando o sábado. Fincou seus dedos gordos na boca e rasgou a pele. Pariu um demônio boêmio no vão do museu, comprou um pôster de Hollywood e gorgolejou a vontade de beijar-se. Olhou pra construção no lado oposto. O café queimava seu glóbulo ocular e lábios beijavam as paredes de sua mente. Perdeu-se em seus guindastes de medo. Amou daquela vez como se fosse a última. No meio do caminho tinha uma pedra. Por lhe deixar respirar, por lhe deixar existir, atravessou a rua com seu passo tímido.