Camisa de Força

Por R.

Não consigo chorar. Tem-me surgido o problema desde considerável tempo. É certo que não me daria conta das circunstâncias não fosse o desembaraço de duas noites que se passaram. Uma em que a raiva acometeu e eriçou os pelos das minhas costas, outra em que o desacerto entre aquilo que sou, o que acham que devo ser e o que porventura serei desaguou em imensurável desespero – o qual, entretanto, não se arriscou a ir além da pressão dos maxilares, colados um ao outro na esperança de substituírem o afago de uma gota que escorre pelas bochechas, alcança o queixo em um golpe de agilidade e dá seu derradeiro salto em direção a lugar nenhum, rumo ao infinito da queda livre.

A tarefa de uma lágrima não é das mais fáceis, tampouco das muito agradáveis. Espremer-se entre a mente e o corpo é um fardo que só a elas é possível. Deus é grande demais e não cabe no homem, pois ver-se em reflexos disformes é que revela a acidez da real imagem e semelhança. Já a alma é instável em excesso e constantemente violenta. São necessárias quatro paredes acolchoadas, um casulo branco apertadíssimo e talvez uma mordaça impiedosa para controlar a alma, mas jamais o fariam um par de olhos chorosos. Diz-se que as visitas às almas são feitas sempre aos domingos, ao cair da noite. Trajes adequados são imprescindíveis, assim como conduta apropriada e palavras-chave para que a portinhola do quarto acolchoado seja aberta com segurança, sem excessos. Sempre sem excessos, sempre. Depois de aberta a portinhola, o diálogo é simples: o visitante diz pouco, o visitado nada. Sobram na conversa algumas poucas cerimônias, outras batas esvoaçantes e a parede acolchoada, soberana, casada com o casulo branco.

Mas não consigo chorar. Um pranto que seja, um “ai” mais úmido, um nó na garganta. Nada. Somado ao desconforto de não poder gerar lágrimas, perturba-me um fato óbvio decorrente da mesma desgraça: desconheço a causa do mal por completo. Cogitei problemas no canal lacrimal – pois bem se sabe hoje em dia que a saúde de um homem é acometida pelos males mais surpreendentes. Mas anulei rapidamente tal possibilidade. As baforadas urbanas me fazem mal aos olhos e constantemente lacrimejo nas calçadas. Lacrimejo, não choro.

Sinto a falta do choro convulso, que me faça doer os músculos do abdômen, deforme sem pudores meu rosto, me roube o ar e a claridade na vista e faça-me subsistir somente no salgar dos lábios trêmulos tentando em vão calar seus soluços epilépticos. Sinto muitas faltas. Sinto a falta de uma longa sucessão de emoções arrebatadoras, de aventuras previstas para um futuro próximo, de certezas fecundas e daquele caminhar fulminante, do pescoço equilibrado com a posição da coluna, encerrando um êxtase de certezas nas inspirações extensas e pausadas das narinas, em um carnaval de certezas, uma orgia de certezas. Sinto falta de mim, céus!

Foi assim que me tomou a ideia de tocar os olhos. A sensibilidade ocular é bastante frágil para romper a barragem lacrimal ao toque rude da realidade na vista. Usei o indicador esquerdo, tomando o devido cuidado de afastar as pálpebras do olho direito com os dedos indicador e polegar de mesmo lado. Assisti ao experimento no espelho. Aproximei a extremidade do dedo à retina, estiquei os tendões necessários, fixei o olhar na mancha bege. Imediatamente senti arder o único olho provocado, as pálpebras se debatiam para proteger seu rei, meus dedos lutavam contra a guarda real. Girava o olhar na órbita quando senti as forças das sentinelas oculares pesarem sobre minha vontade. O olho se fechou violentamente, cerrei seu irmão gêmeo do outro lado da face. Abri-os novamente, chorava. Chorava uma única lágrima solitária, artificial, muda. E somente de um lado eu chorava. Meu outro olho acompanhava friamente o espetáculo desgraçado de seu gêmeo, sem pestanejar ou esboçar intenção de piscar. Derramei a lágrima que me competia derramar, esperei que chegasse até o queixo e saltasse em direção a lugar nenhum. Dei-lhe o glamour que daria a qualquer lágrima que viesse me abençoar com sua irrevogável presença. A gota não esbarrou nos lábios, seguiu direto para o despenhadeiro que a aguardava. Sacolejou um pouco, esbarrou no pulso que agora descansava junto ao abdômen e desfaleceu no escandaloso ponto final de todas as quedas, o solo. Olhei-me, metade do rosto marcado pela nesga umedecida da pele, metade ressequido pelo rancor e asco de expor às vistas a tortura da realidade.

Pisquei três vezes.

Exatamente três, pois sei

que a quarta laçada das pálpebras

não foi somente um piscar de olhos.

Foi uma enchente, uma inundação de vazios

preenchidos pelo mel do homem,

pelo fel dos deuses.

Abri os lábios, engoli o sal, fechei os olhos.

1 comentários:

Má disse...

Como eu já havia dito, você exala arte.
Não vou gastar linhas dizendo frases feitas que você já está mais do que cansado de saber.
Absorto do mundo real, essa é sua cara, meu querido.
beiiijinhos