Retrato

Por R.

Os cabelos loiros lhe cobriam o olhar ébrio que lançava em direção ao vácuo à sua frente (ou em seu interior). O peito dele, coberto pelo suéter felpudo azul, sustentava a cabeça frágil dela. Estavam emudecidos há algum tempo. Ela, levemente alcoolizada, roçava displicentemente seu rosto no suéter, tamborilando os dedos pálidos sobre a barriga dele. Ele não vai se lembrar disso, insistia. Ele iria se lembrar daquilo. Até porque o aroma agridoce do hálito dela penetraria seu corpo por completo, o faria arrepiar a nuca e continuar fingindo despudoradamente sua suposta embriaguez. As bolsas continuavam prensadas por baixo dos corpos do casal, atirados ao sofá encouraçado ao lado do aparador antigo da casa. Um retrato de um senhor altivo pendia na parede oposta, vigiando o espetáculo sensual que se densenrolava. Ela também iria se lembrar daquilo. Todos iriam. Inclusive o grupo de literários que se debruçava na escadaria de mármore ao lado, os bêbados que se abraçavam cantarolando tristes canções na frente do vitral, o casal de que se beijava no pufe negro, o negro que servia as pizzas de alcachofra, a debutante que socializava com seus convidados e o homem que sentava ao lado dos dois, que destrinchava a volúpia que ele nunca tivera a oportunidade de provar com ela, a própria. A atriz dos sonhos flácidos que pendiam em suas noites insones, passadas aos olhos arregalados na escuridão dos beijos irreais farfalhando no chão do quarto, dos abraços possessivos que jaziam consigo aonde quer que fosse, junto da perspectiva tórrida e viciosa que perseguia sua alma: tê-la enfim por completo. Ele ainda vestia o suéter azul e ela ainda tamborilava a palidez de sua mão no peito dele. E o homem ao lado, junto do arrogante velho pendente na parede, observava a encenação dos bastidores. Era sempre onde ele estivera: nos bastidores. Preparando sua musa para mergulhar nos braços de outros, em milhares de olhares sedentos por sua beleza satânica; para entrar em cena, estarrecendo o mais insensível dos homens em seus gestos lânguidos, ocultando a ternura de seus cabelos na tez fria que emanava aromas mais nobres, tremendamente mais excitantes que o hálito agridoce perverso que ela insistira em portar naquela noite. E ele, sentado nos bastidores da peça à qual sempre quisera participar, assistia à sua criação bailar ao som de mil suspiros profanos, inssosos e inadequados à grandeza de seu ser. E então, como faz o condenado ao ver-se subindo ao cadafalso, ele vislumbrava os olhos infinitos dela fecharem-se em sincronia com o contato abjeto de sua boca com a de outro. Ele ainda usava o suéter azul, e ela não tamborilava mais seus dedos. Sua mão agora acariciava a nuca dele, enquanto a sintonia perversa daqueles lábios valsando obrigava o homem ao lado a cruzar a sala, passar pelo retrato enegrecido, pelo grupo, pelo ajuntamento, pelo casal, pelo negro, pela debutante e finalmente chegar ao gramado, onde sentiu o solo tocar seus joelhos e umedecer sua calça com a orvalhada grama e as lágrimas convulsas que escorriam por sua fronte.

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