Nove Horas

Por R.

"Sim. Talvez depois das nove.", disse Alice Prado golpeando o antigo tapete ao sol. Pois para ele tudo aquilo soaria como um sorvo de liberdade, uma dádiva fraterna por ter se comportado como deveria durante uma noite em que preferiria ter rolado seu cubos de madeira a passado minutos que fossem na mesa de jantar. E quão alegre, quão rejuvenescedora era a nuvem de poeira que flutuava aos olhos de Gustavo, gorda como a confeiteira debruçada sobre o balcão de fórmica da Spiegel's. Seguiu triunfante pela escada ao lado dos lírios cogitando quanto tempo decorreria até que os ponteiros soturnos no andar de cima marcassem nove horas. Seria duas horas, certo? O almoço saíra tarde naquela sexta-feira pois Lúcia não se lembrara de comprar alcachofras. Principalmente porque sua mãe amava alcachofras e a mercearia estaria fechada quando a cozinheira chegasse arfante à porta, segurando seu avental xadrez e invejando a sorte que Alice tinha em ter bom trato com crianças - e não com alimentos. O almoço saíra tarde e Gustavo Tavares esperou até que seu pai irrompesse da porta dos fundos, que lhe trouxesse um punhado de balas e o abraçasse no hall para que todos vissem, para que Lúcia se assustasse com a gritaria e Alice batesse novamente no tapete, para que o cão ladrasse junto do senhor esguio que caminhava sob o sol de Abril e para que as folhas verdejantes de seu quintal se empurrassem a fim de ver o espetáculo que era presenciar Gustavo e o senhor Tavares juntos. Não somos mais os mesmos, pensou ao ver a negra Lúcia levando casacos beges para o quarto de seus pais. Naquele momento não lhe importava quão jovem ele era, nem a riqueza de sua família ou a perversidade do vento que arrepiava-lhe as costas das mãos - eram duas horas, não eram? - ou se Lúcia contara errado o número de roupas de frio necessárias para uma viagem de cinco dias. Que saudades tinha de San Humbolt, das pedras tremendo sob o relinchar dos motores corriqueiros, dos vendedores de ouro na Calçada Larga, das velhas acostando-se no umbral da igreja, das garotas fornidas volúveis aos rapazes, das viúvas cosendo ao lado do canteiro de cravos, das livrarias abarrotadas na rua Francisco Vellajo; pois era isso que ele amava, o céu de Abril, as nuvens de poeira, as alcachofras, as nove horas, ele, ali, sucessivamente aquele vislumbre de todos os instantes, seus detalhes. Gustavo alcançou a porta do quarto e girou a maçaneta preateada. Como era vasto o bom gosto de sua mãe! Indiferente às vistas mundanas, que bela mulher segurava-lhe no colo enquanto traçava planos para a semana seguinte. Futilidades patéticas, tiranas para o senhor Tavares em sua ocupação eterna com os negócios. Futilidades, diria ele se visse a mãe de Gustavo com um coque alto preso por um lápis vermelho-chumbo, riscando o que viria a ser a estufa ao lado das videiras. Eram duas e meia e Gustavo podia ver Alice Prado golpeando o tapete de seu quarto enquanto seus pés descalços tocavam as tábuas frias que recobriam o chão do seu aposento. O vento levantava as nuvens de poeira e as dissipava lentamente em frente às árvores beges. Tão triste, tão infinitamente fácil ver Alice sufocada no trabalho diário. Os ponteiros marcariam nove horas e a senhorita Prado não estaria com Gustavo - já seriam três horas? O garoto repousou as pernas na potrona verde-musgo e estirou os braços ao longo do corpo magro. Jazendo na cama, imerso no aroma amargo da madeira, fechou os olhos. Nove horas - se sequer logravam bater as três...

1 comentários:

Giovana Nunes disse...

Os seus textos narrativos me lembram os do Sartre.
Tudo tão... trivial
Como já dizia Virginia Woolf,
"O trivial é tão ou mais potente na vida de uma pessoa do que o trágico ou o heróico. É ele, na verdade, que nos constitui"
adoro você,
Beijos